POSFÁCIO
“As
palavras corretas nem sempre são agradáveis.
As
palavras agradáveis geralmente não são corretas.” Lao-Tsé
Esta obra
tão esperada, como sabemos, é resultado das comemorações do centenário de
nascimento do capitão Miguel Edgy Távora Arruda, promovido por suas filhas,
filhos, netas e netos, irmãos e afins. A própria veia comemorativa da família
foi por ele trazida – no sentido estrito de traditio
(tradição) – ao longo de uma sequência de comemorações familiares,
ocorridas a partir da segunda metade do século XX.
Talvez
Miguel Edgy tivesse se influenciado pelas comemorações do casamento de seu tio
Ananias com Ana dos Santos Arruda (1991), em um evento ocorrido oito anos antes
dele ter nascido. Foi reunida a família, registrando-se o evento em uma grande
fotografia. A tradição, no entanto, pode-se dizer que foi “inventada” cinquenta
e sete anos depois, nas comemorações das bodas de ouro de seus pais, Raimundo
Arruda e Noemy Távora de Assis Arruda (1968). Mais uma vez, reunindo-se membros
da família para uma grande foto panorâmica.
O clima
comemorativo prosseguiu no centenário de nascimento de seu tio, Ananias Arruda
(1986), talvez o membro da família mais celebrado dentre todos. Na ocasião,
Miguel Edgy criou em sua homenagem a Fundação Comendador Ananias Arruda,
responsável por manter o museu Comendador Ananias Arruda.
Um ano
depois, em 1987, comemorava-se o centenário de nascimento da mãe de sua esposa,
sua sogra e tia, Maria Adelina de Arruda Furtado, seguindo o mesmo modelo de
foto panorâmica dos membros da família. Mais seis anos depois (1993), seguia-se
as comemorações do centenário de nascimento de seu pai.
No
interregno entre estas últimas comemorações, Miguel Edgy produziu Relembranças: o último registro lúcido
de suas memórias, antes delas começarem a esvair-se. Em 1994, comemorava-se
suas bodas de ouro com sua esposa, Maria Adelina Furtado de Arruda. A partir de
então, por conta de uma doença cerebral, sua memória e lucidez começavam a ser
afetadas.
A
tradição, no entanto, manteve-se, por esforço de seus filhos e filhas. Em 2004, eram comemoradas suas bodas de
diamante com Maria Adelina Furtado de Arruda (homônima de sua mãe), que
faleceria no mesmo ano, pouco tempo depois. Em 2010 juntou-se à esposa o
capitão Edgy. No esforço dos filhos e filhas de manterem a tradição, foi, em
2011, comemorado o centenário de casamento de Ananias Arruda com Ana dos Santos
Arruda. Era o centenário não apenas de um casamento, como também do primeiro
evento comemorativo da família.
E neste
ano de 2019, Ana Margarida publica Relembranças
em comemoração do centenário de seu nascimento de seu pai, meu avô, capitão
Edgy Távora Arruda.
Pode-se
afirmar que a família era tudo para Miguel Edgy. Seus melhores amigos eram seus
primos, encontrados no seio do espaço familiar, seu casamento deu-se também
dentro da família, já que Maria Adelina era sua prima. E apesar de ter feito
uma administração impecável na cidade de Baturité, quando prefeito, digno de
reconhecimento perante até seus inimigos políticos, que não poderiam negar o
óbvio, sua candidatura política também veio através de seus laços de família.
Apesar de
sua preocupação com a manutenção da memória de seus entes queridos e
familiares, percebe-se, por sua personalidade, que seu esforço de conservação
da memória não era somente assunto de cariz particular e familiar, o que pôde
ter suscitado seu interesse pela “História Universal” (na acepção de como ele
concebia a Ciência da História).
Ele
dedicou-se a esta disciplina a maior parte de sua vida, mesmo sem formação
profissional. Um de seus gestos mais caros em relação à preservação do que
podemos chamar de “memória coletiva” remete-se a construção de uma cápsula do
tempo, quando era prefeito de Baturité, na década de 1950 – muito antes,
portanto de sua preocupação em criar um museu.
Na
ocasião, foram depositadas em uma caixa cimentada, registros, poesias, cartas e
expectativas futuras para os próximos cinquenta anos, quando a caixa seria
aberta novamente. Infelizmente não se pôde comemorar tal evento, pois uma
administração da cidade, irresponsavelmente, ao efetuar uma reforma na praça
onde foi depositada a cápsula, destruiu-a, juntamente com os registros
mnemônicos ali contidos
A cápsula
do tempo, a conservação do jornal A
Verdade e as gravações de Relembranças demonstram seu esforço em
não permitir que eventos importantes da cidade, sejam eles dolorosos ou não,
não se percam no olvido. Em Relembranças
as memórias afetivas se imbuem de um teor central, entrelaçadas com a política
local. Por tudo isso, reconhece-se o legado precioso que é fornecido a
historiadores e pesquisadores em geral.
No meu
caso, afirmo que todo meu trabalho de pesquisa foi e ainda é norteado pelas
fontes salvaguardadas por ele.
Relembranças e os números de A
Verdade foram fundamentais para mim, tanto no meu trabalho de conclusão de
curso, quando me graduei em História, como no mestrado, e agora no meu
doutoramento.
Pergunto-me
se quando Vicente Arruda escrevia seus editoriais em A Verdade no final da década de 1910, ele imaginava que estaria,
cem anos depois, auxiliando um familiar a definir os parâmetros do conceito de coronelismo.
Assim,
Miguel Edgy foi a ponte que uniu todos os registros de A Verdade até meus trabalhos de pesquisa. De forma que sou
tributário de suas realizações, não somente como neto, mas sobretudo como
historiador. Seu intento não era apenas salvaguardar a memória de seu tio, mas
de fornecer fontes de pesquisa para a história de sua amada cidade: Baturité.
Nesse
ponto me ocorre uma memória afetiva da infância, quando passava as férias de
fim de ano, entre 1992 e 1993, em sua casa, na rua professor Lino Encarnação
(um endereço que nunca esqueço) no bairro da Parquelândia. Em uma rara ocasião
em que ele não se encontrava em Baturité, eu, com então dez anos, perguntei-lhe
por que ele gostava tanto de Baturité. Sua resposta tautológica não me foi satisfatória
(algo como “porque eu gosto”). Mas hoje eu sei o porquê: suas memórias afetivas
remetem-se quase sempre a esta cidade. Os principais eventos de sua vida foram
em Baturité – uma cidade que na minha infância representava longas tardes
entediantes, na juventude, prazerosas diversões e agora representa uma
importante fonte de pesquisa histórica.
As
memórias afetivas de Miguel Edgy quase sempre se encenam na sua querida cidade.
São “memórias quentes”, na acepção do historiador português Fernando Catroga. Muitas
delas são denúncias de abusos de poder de políticos da época que mantém
descendentes na atualidade, por isso elas podem gerar consequências, estando no
campo disputa até hoje. Esta é a razão pela qual os nomes de personagens
polêmicos foram modificados por Ana Margarida, sobretudo, em virtude do direito
de resguardo da memória desses personagens. Em verdade, espero que futuramente
seja possível a edição desta obra com os nomes originais. Não devemos fugir das
memórias quentes, mas trabalhá-las, psicanaliticamente falando, e apaziguá-las.
Isto foi o que Edgy procurou fazer ao retrazer à tona o caso do roubo do banco
em Baturité, em 1933. Esta foi sua primeira memória trazida em suas gravações,
por conta das acusações sofridas por sua família.
Nesta
época a família ingressava na política, ocupando o espaço político deixado
pelos políticos decaídos após a Revolução de 30, dentre estes, seus acusadores.
Edgy denuncia, assim, vários casos de falcatruas e apropriação indevida de bens
alheios de personagens que sempre foram acobertados pela lei. Hoje, quando
temos a oportunidade de conhecer esses personagens, uma outra lei (a de
resguardo da memória pessoal) lhe acoberta. Ou seja, mesmo depois de mortos,
essa gente continua sendo desresponsabilizada por seus atos em vida! O que
seria mais justo nesse caso? Quanto ao caso do roubo do banco, como neto, tenho
minha opinião, mas como historiador nunca saberemos quem o roubou de fato –
todas as possibilidades devem ser consideradas. Mas o importante para a História,
não é quem roubou o banco ou não (deixemos isso para o jornalismo
investigativo). O importante eram os usos políticos que esse fato suscitou na
política local, através de acusações (sem provas, por sinal) e calúnias de
adversários. A família, naquela época passou a ser odiada por uma parte da
cidade, que foi convencida pela propaganda desqualificadora de seus adversários
políticos, e amada por outra parte. Muitos deles, beneficiados pelo modelo de
administração católico-social adotada por Ananias Arruda – que por sua vez era
implementada nacionalmente pelo Estado de compromisso varguista – envolvendo
desde políticas de profilaxia de doenças e vacinação a construções de moradias
populares, dentre várias medidas assistenciais.
Não se
pode deixar de observar que os episódios políticos de Baturité, como microcosmo
na década de 1930, carregam bastantes semelhanças com a conjuntura política
global do país atualmente, em que acusações de corrupção sem prova suscitam as
mais variadas paixões políticas, mobilizadoras do ódio.
Aproveitando
esse assunto, afirmo que um dos principais legados de Relembranças é o respeito que paira sobre a personalidade de Edgy.
Respeito este, sobretudo, pelos que, de forma honesta, professavam ideias
contrárias as dele. Ele, desde quando ingressou no Exército, atuou quase sempre
no meio militar conservador (ao contrário do que aconteceu com parte de seus
filhos e netos). Mas isso não o impediu de em suas memórias tecer comentários
elogiosos às figuras políticas de destaque no espectro político da esquerda;
tanto no cenário global, quando se refere a Luís Carlos Prestes, como no âmbito
de Baturité. Em Relembranças, o
respeito que Edgy reverencia aos três primos comunistas de Baturité (da família
Maciel), principalmente a Pedro Wilson Mendes, demonstra sua personalidade
serena e desapaixonada. Lamentou a morte do comunista Naurício Mendes pelas
forças de repressão varguista, e desmentiu que seu tio Ananias Arruda, à época
prefeito de Baturité, tivesse sido responsável pela ordem de prisão a Heitor
Maciel, ao contrário do que o chefe de política Cordeiro Neto propunha.
Pode-se
dizer que Edgy segue a cartilha rara dos bons conservadores, como o foi
Churchill, e por mais que discorde de seus pontos de vistas, ainda são bons
conservadores, pois também discordam de nosso ponto de vista, mas nem por isso,
nos silenciam. Espécie cada vez mais rara em nossa atualidade. O debate
político está contaminado pelas chamadas fake
News, mentiras e calúnias, semelhantes às que a família sofreu na década de
1930, mas sob a forma de bilhetes anônimos postos por debaixo da porta das
casas.
Por fim, que esta obra continue a contribuir com o intuito desse humilde capitão de, primeiro, unir os entes familiares sob a tradição comemorativa. Afinal, de todas as construções imaginárias das sociedades, a família é aquela que carrega a base natural biológica do compartilhamento genético. A tradição familiar é o que faz primos, que estão há anos sem se verem, falarem um com o outro sem perderem o laço de amizade. E at last, but not least, sendo até mais importante que laços familiares, que esse trabalho cumpra seu intuito de servir como fonte memorialística, que os historiadores a transformem em História.
Luiz Gustavo Lima Arruda
Fortaleza, maio de 2019
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