terça-feira, 30 de novembro de 2021

Por: Luiz Gustavo Lima Arruda - Posfácio do livro "RELEMBRANÇAS" de Miguel Edgy Távora Arruda

 

Professor Historiador Luiz Gustavo Lima Arruda

Livro de Miguel Edgy Távora Arruda - "Relembranças - Lampejos de minha memória", 2019.

POSFÁCIO

“As palavras corretas nem sempre são agradáveis.

   As palavras agradáveis geralmente não são corretas.”                                             Lao-Tsé

 

Esta obra tão esperada, como sabemos, é resultado das comemorações do centenário de nascimento do capitão Miguel Edgy Távora Arruda, promovido por suas filhas, filhos, netas e netos, irmãos e afins. A própria veia comemorativa da família foi por ele trazida – no sentido estrito de traditio (tradição) – ao longo de uma sequência de comemorações familiares, ocorridas a partir da segunda metade do século XX.

Talvez Miguel Edgy tivesse se influenciado pelas comemorações do casamento de seu tio Ananias com Ana dos Santos Arruda (1991), em um evento ocorrido oito anos antes dele ter nascido. Foi reunida a família, registrando-se o evento em uma grande fotografia. A tradição, no entanto, pode-se dizer que foi “inventada” cinquenta e sete anos depois, nas comemorações das bodas de ouro de seus pais, Raimundo Arruda e Noemy Távora de Assis Arruda (1968). Mais uma vez, reunindo-se membros da família para uma grande foto panorâmica.

O clima comemorativo prosseguiu no centenário de nascimento de seu tio, Ananias Arruda (1986), talvez o membro da família mais celebrado dentre todos. Na ocasião, Miguel Edgy criou em sua homenagem a Fundação Comendador Ananias Arruda, responsável por manter o museu Comendador Ananias Arruda.

Um ano depois, em 1987, comemorava-se o centenário de nascimento da mãe de sua esposa, sua sogra e tia, Maria Adelina de Arruda Furtado, seguindo o mesmo modelo de foto panorâmica dos membros da família. Mais seis anos depois (1993), seguia-se as comemorações do centenário de nascimento de seu pai.

No interregno entre estas últimas comemorações, Miguel Edgy produziu Relembranças: o último registro lúcido de suas memórias, antes delas começarem a esvair-se. Em 1994, comemorava-se suas bodas de ouro com sua esposa, Maria Adelina Furtado de Arruda. A partir de então, por conta de uma doença cerebral, sua memória e lucidez começavam a ser afetadas.

A tradição, no entanto, manteve-se, por esforço de seus filhos e filhas.  Em 2004, eram comemoradas suas bodas de diamante com Maria Adelina Furtado de Arruda (homônima de sua mãe), que faleceria no mesmo ano, pouco tempo depois. Em 2010 juntou-se à esposa o capitão Edgy. No esforço dos filhos e filhas de manterem a tradição, foi, em 2011, comemorado o centenário de casamento de Ananias Arruda com Ana dos Santos Arruda. Era o centenário não apenas de um casamento, como também do primeiro evento comemorativo da família.

E neste ano de 2019, Ana Margarida publica Relembranças em comemoração do centenário de seu nascimento de seu pai, meu avô, capitão Edgy Távora Arruda.

Pode-se afirmar que a família era tudo para Miguel Edgy. Seus melhores amigos eram seus primos, encontrados no seio do espaço familiar, seu casamento deu-se também dentro da família, já que Maria Adelina era sua prima. E apesar de ter feito uma administração impecável na cidade de Baturité, quando prefeito, digno de reconhecimento perante até seus inimigos políticos, que não poderiam negar o óbvio, sua candidatura política também veio através de seus laços de família.

Apesar de sua preocupação com a manutenção da memória de seus entes queridos e familiares, percebe-se, por sua personalidade, que seu esforço de conservação da memória não era somente assunto de cariz particular e familiar, o que pôde ter suscitado seu interesse pela “História Universal” (na acepção de como ele concebia a Ciência da História).

Ele dedicou-se a esta disciplina a maior parte de sua vida, mesmo sem formação profissional. Um de seus gestos mais caros em relação à preservação do que podemos chamar de “memória coletiva” remete-se a construção de uma cápsula do tempo, quando era prefeito de Baturité, na década de 1950 – muito antes, portanto de sua preocupação em criar um museu.

Na ocasião, foram depositadas em uma caixa cimentada, registros, poesias, cartas e expectativas futuras para os próximos cinquenta anos, quando a caixa seria aberta novamente. Infelizmente não se pôde comemorar tal evento, pois uma administração da cidade, irresponsavelmente, ao efetuar uma reforma na praça onde foi depositada a cápsula, destruiu-a, juntamente com os registros mnemônicos ali contidos

A cápsula do tempo, a conservação do jornal A Verdade e as gravações de  Relembranças demonstram seu esforço em não permitir que eventos importantes da cidade, sejam eles dolorosos ou não, não se percam no olvido. Em Relembranças as memórias afetivas se imbuem de um teor central, entrelaçadas com a política local. Por tudo isso, reconhece-se o legado precioso que é fornecido a historiadores e pesquisadores em geral.

No meu caso, afirmo que todo meu trabalho de pesquisa foi e ainda é norteado pelas fontes salvaguardadas por ele. Relembranças e os números de A Verdade foram fundamentais para mim, tanto no meu trabalho de conclusão de curso, quando me graduei em História, como no mestrado, e agora no meu doutoramento.

Pergunto-me se quando Vicente Arruda escrevia seus editoriais em A Verdade no final da década de 1910, ele imaginava que estaria, cem anos depois, auxiliando um familiar a definir os parâmetros do conceito de coronelismo. 

Assim, Miguel Edgy foi a ponte que uniu todos os registros de A Verdade até meus trabalhos de pesquisa. De forma que sou tributário de suas realizações, não somente como neto, mas sobretudo como historiador. Seu intento não era apenas salvaguardar a memória de seu tio, mas de fornecer fontes de pesquisa para a história de sua amada cidade: Baturité.

Nesse ponto me ocorre uma memória afetiva da infância, quando passava as férias de fim de ano, entre 1992 e 1993, em sua casa, na rua professor Lino Encarnação (um endereço que nunca esqueço) no bairro da Parquelândia. Em uma rara ocasião em que ele não se encontrava em Baturité, eu, com então dez anos, perguntei-lhe por que ele gostava tanto de Baturité. Sua resposta tautológica não me foi satisfatória (algo como “porque eu gosto”). Mas hoje eu sei o porquê: suas memórias afetivas remetem-se quase sempre a esta cidade. Os principais eventos de sua vida foram em Baturité – uma cidade que na minha infância representava longas tardes entediantes, na juventude, prazerosas diversões e agora representa uma importante fonte de pesquisa histórica.

As memórias afetivas de Miguel Edgy quase sempre se encenam na sua querida cidade. São “memórias quentes”, na acepção do historiador português Fernando Catroga. Muitas delas são denúncias de abusos de poder de políticos da época que mantém descendentes na atualidade, por isso elas podem gerar consequências, estando no campo disputa até hoje. Esta é a razão pela qual os nomes de personagens polêmicos foram modificados por Ana Margarida, sobretudo, em virtude do direito de resguardo da memória desses personagens. Em verdade, espero que futuramente seja possível a edição desta obra com os nomes originais. Não devemos fugir das memórias quentes, mas trabalhá-las, psicanaliticamente falando, e apaziguá-las. Isto foi o que Edgy procurou fazer ao retrazer à tona o caso do roubo do banco em Baturité, em 1933. Esta foi sua primeira memória trazida em suas gravações, por conta das acusações sofridas por sua família.

Nesta época a família ingressava na política, ocupando o espaço político deixado pelos políticos decaídos após a Revolução de 30, dentre estes, seus acusadores. Edgy denuncia, assim, vários casos de falcatruas e apropriação indevida de bens alheios de personagens que sempre foram acobertados pela lei. Hoje, quando temos a oportunidade de conhecer esses personagens, uma outra lei (a de resguardo da memória pessoal) lhe acoberta. Ou seja, mesmo depois de mortos, essa gente continua sendo desresponsabilizada por seus atos em vida! O que seria mais justo nesse caso? Quanto ao caso do roubo do banco, como neto, tenho minha opinião, mas como historiador nunca saberemos quem o roubou de fato – todas as possibilidades devem ser consideradas. Mas o importante para a História, não é quem roubou o banco ou não (deixemos isso para o jornalismo investigativo). O importante eram os usos políticos que esse fato suscitou na política local, através de acusações (sem provas, por sinal) e calúnias de adversários. A família, naquela época passou a ser odiada por uma parte da cidade, que foi convencida pela propaganda desqualificadora de seus adversários políticos, e amada por outra parte. Muitos deles, beneficiados pelo modelo de administração católico-social adotada por Ananias Arruda – que por sua vez era implementada nacionalmente pelo Estado de compromisso varguista – envolvendo desde políticas de profilaxia de doenças e vacinação a construções de moradias populares, dentre várias medidas assistenciais.

Não se pode deixar de observar que os episódios políticos de Baturité, como microcosmo na década de 1930, carregam bastantes semelhanças com a conjuntura política global do país atualmente, em que acusações de corrupção sem prova suscitam as mais variadas paixões políticas, mobilizadoras do ódio.

Aproveitando esse assunto, afirmo que um dos principais legados de Relembranças é o respeito que paira sobre a personalidade de Edgy. Respeito este, sobretudo, pelos que, de forma honesta, professavam ideias contrárias as dele. Ele, desde quando ingressou no Exército, atuou quase sempre no meio militar conservador (ao contrário do que aconteceu com parte de seus filhos e netos). Mas isso não o impediu de em suas memórias tecer comentários elogiosos às figuras políticas de destaque no espectro político da esquerda; tanto no cenário global, quando se refere a Luís Carlos Prestes, como no âmbito de Baturité. Em Relembranças, o respeito que Edgy reverencia aos três primos comunistas de Baturité (da família Maciel), principalmente a Pedro Wilson Mendes, demonstra sua personalidade serena e desapaixonada. Lamentou a morte do comunista Naurício Mendes pelas forças de repressão varguista, e desmentiu que seu tio Ananias Arruda, à época prefeito de Baturité, tivesse sido responsável pela ordem de prisão a Heitor Maciel, ao contrário do que o chefe de política Cordeiro Neto propunha.

Pode-se dizer que Edgy segue a cartilha rara dos bons conservadores, como o foi Churchill, e por mais que discorde de seus pontos de vistas, ainda são bons conservadores, pois também discordam de nosso ponto de vista, mas nem por isso, nos silenciam. Espécie cada vez mais rara em nossa atualidade. O debate político está contaminado pelas chamadas fake News, mentiras e calúnias, semelhantes às que a família sofreu na década de 1930, mas sob a forma de bilhetes anônimos postos por debaixo da porta das casas.

Por fim, que esta obra continue a contribuir com o intuito desse humilde capitão de, primeiro, unir os entes familiares sob a tradição comemorativa. Afinal, de todas as construções imaginárias das sociedades, a família é aquela que carrega a base natural biológica do compartilhamento genético. A tradição familiar é o que faz primos, que estão há anos sem se verem, falarem um com o outro sem perderem o laço de amizade. E at last, but not least, sendo até mais importante que laços familiares, que esse trabalho cumpra seu intuito de servir como fonte memorialística, que os historiadores a transformem em História.

Luiz Gustavo Lima Arruda

Fortaleza, maio de 2019 

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