"No ano de
1937, por ocasião do carnaval, a cidade encheu-se de boatos que iria haver uma
grande perturbação da ordem. Meu tio foi a Fortaleza, falou ao governador
Menezes Pimentel qual era a situação da cidade e o governador resolveu nomear
um delegado especial para o período dos festejos carnavalescos.
Baturité tinha
como delegado de polícia um sargento da força pública que era um homem, de
inteira confiança do meu tio, chamado Sargento Sebastião. Mas, como ele era
apenas sargento o governador achou por bem indicar um delegado especial e
nomeou um tenente da polícia que aqui veio, nas vésperas do carnaval, e se
hospedou na pensão do Sr. Félix Franco.
Os três dias
de carnaval decorreram pacificamente, mas o golpe foi dado na noite da terça
feira de carnaval para amanhecer a Quarta-Feira de Cinzas. O golpe foi dado da
maneira que só podia sair das cabeças desses elementos que eram mesmo
maquiavélicos.
Um grupo de
pessoas formou uma espécie de serenata e às 2:30h da manhã elas saíram e foram
à casa do Sargento Sebastião e começaram a cantar à porta da casa, letras
difamatórias adaptadas em músicas carnavalescas.
O Sargento
Sebastião acordou e, inteligentemente, saiu de sua casa pelos fundos e foi
acordar os soldados do destacamento policial. Depois de armá-los na delegacia,
os levou até a pensão do Senhor Félix Franco e acordou o delegado especial
tenente da polícia, Tenente Martinho Rodrigues. Isto levou algum tempo...
Enquanto isto,
o grupo desceu a Avenida Proença, penetrou nos jardins da casa do meu tio (o
vaticano) e foi cantar as suas músicas com suas letras difamatórias e
difamantes na porta da casa, dentro do jardim que ficava fronteiro a casa. O
meu tio que era um homem de paz e de harmonia e a família ouviu tudo aquilo sem
nenhuma reação.
De lá, o grupo
desceu pela 7 de Setembro e veio à casa de meu pai. Exatamente em frente a esta
casa, onde me encontro agora, neste instante, eles começaram a cantar em frente
à primeira janela que daqui eu estou vendo. Eu, que dormia no terceiro quarto
da casa, acordei (eram 3 horas da manhã) com aquela música, com aquela cantoria
que me dava impressão de uma serenata. Mas, apurando o ouvido comecei a
verificar que a letra...
Imediatamente,
já desperto, gritei para a minha mãe: “Mamãe está ouvindo isto?” Ela gritou e
disse: “Estou, sim”. Aí, eu grito pra ela: “Vamos abrir a janela?” E ela
respondeu incontinente, com aquela coragem que lhe era peculiar. “Vamos”.
Eu corro do
meu quarto, atravesso o quarto das minhas irmãs, atravesso o quarto dos meus
pais, atravesso a sala de visitas e escancaro a janela, sempre com minha mãe ao
meu lado. Ao abrir a janela o grupo tomou um susto, talvez pensando que ia
sair, através da janela, uma resposta violenta, talvez até tiros, mas nós
estávamos desarmados. A única arma que nós tínhamos era a palavra e, de peito
aberto, eu e minha mãe os interrogamos. O que eles queriam? Eram uns canalhas
que vinham na calada da noite acordar uma família, como a nossa, que dormia sem
nenhuma defesa e sem nenhuma proteção. Então, iniciou-se uma discussão.
Eu procurei
ver quem eram as pessoas que ali estavam. O primeiro que eu percebi foi o Dr.
Edmundo Vitoriano que procurou se disfarçar chegando um pouquinho pra trás e
ficando no vão do portão lateral da casa. Verifiquei também que fazia parte do
grupo o tenente do exército Erialdo Dutra Ramos, filho do chefe político Dr.
João Ramos que era adversário do tio Ananias.
Esse tenente
do exército estava em casa, devolvido pelo exército que tinha constatado que
ele sofria das faculdades mentais e o tinha mandado pra casa, pra se recuperar.
O seu fim foi trágico porque, anos depois, ele pegou um revólver, de seu
cunhado Saraiva Xavier casado com sua irmã, e detonou um tiro na própria
cabeça, suicidando-se.
Outro elemento
que estava presente era o coletor estadual de Baturité, com o seu filho que era
um rapazinho muito atrevido. O coletor de Baturité era conhecido e era um homem
que, embora ocupando um cargo de confiança do governo, fazia oposição aberta ao
tio Ananias, que na sua tolerância, não tinha ainda se queixado dele ao
governador do Ceará.
O seu filho, mais
ou menos da minha idade, que era o mais atrevido, iniciou uma discussão
violenta comigo e interessante, ele me convidava pra pular pra fora da casa,
que ele ia medir forças comigo. Eu respondi imediatamente: “Não, eu não vou
pular pra fora, não, pule pra dentro, pule pra dentro que aí eu meço forças com
você”. Mas ele não tinha coragem de pular pra dentro.
Enquanto isto
estava acontecendo, meu pai, penosamente, se levantou e se dirigiu ao quarto,
do lado da sala, onde estava guardado o cofre do banco e sem luz elétrica (pois
naquele tempo uma hora dessas não havia mais luz elétrica) à luz de velas
procurou abri-lo formando o segredo da porta pra tirar o revólver que estava
trancado no cofre com uma caixa de balas, também do lado, e não conseguia,
naquela afobação, abrir o cofre.
A minha tia
avó Elisa correu de seu quarto, em trajes de dormir, e gritava pra mim e pra
minha mãe que acabássemos com aquela discussão, acabássemos com aquilo,
fechássemos a janela porque ela tinha medo de que saísse ali uma desgraça.
Até que esses
homens, naturalmente achando que não valia mais a pena continuar aquela
discussão, em que veio a tona até casos outros envolvendo a minha tia Adelina e
o joalheiro de Fortaleza que não tinha muita fama de honestidade, resolveram ir
embora.
Nós fechamos a
janela e resolvemos ir dormir sem saber o que estava ocorrendo. Acontece que o
Sargento Sebastião que tinha tomado a providência de sair de casa, ido acordar
os soldados do destacamento policial, passado pela delegacia para armá-los, ido
à pensão do Félix acordar o delegado de polícia (delegado extraordinário,
especial), desceu em grupo a rua 7 em procura dos meliantes e foram
encontra-los no bar do Miguel Filho, em volta de uma mesa, bebendo e, naturalmente,
festejando o grande feito que tinham praticado. Imediatamente eles receberam
ordem de prisão do tenente e do sargento e como se esboçou uma certa reação, o
tenente revistou todos eles, tomou o revólver que estava em poder do Dr.
Edmundo Vitoriano e os levou para a delegacia onde eles permaneceram até cinco
horas da tarde, cinco horas da manhã, digo.
O dia ia nascer e o tenente achou que nessa altura podia relaxar a
prisão e imediatamente passou um telegrama para o chefe de polícia.
Tio Ananias
também saiu muito cedo de casa, foi ao telégrafo e passou quatro telegramas. O
primeiro para o Governador Menezes Pimentel, o segundo para o Secretário de
Polícia que se chamava, naquele tempo, Chefe de Polícia, que era o Capitão
Cordeiro Neto, o terceiro para o Dr. José Martins Rodrigues que era o
Secretário de Estado do Interior e Justiça e o quarto para o Dr. Plácido
Castelo, que era o Secretário da Fazenda.
Esses
telegramas foram passados com taxa de urgente e logo que chegaram à Fortaleza,
o Governador Menezes Pimentel providenciou, imediatamente, a vinda pessoal do
Capitão Cordeiro Neto (Secretário de Polícia e Segurança Pública, que naquele
tempo se chamava de Chefe de Polícia), à Baturité. Poucas horas depois chegava
o próprio Chefe de Polícia a Baturité com dois delegados de polícia, escrivão e
toda a comitiva e foram para a delegacia, onde convocou todos esses elementos
para depor e mais algumas testemunhas que tivessem presenciado o acontecimento.
Aí, ocorreu um
caso até interessante. Morava perto da nossa casa uma senhora que tinha o nome
de Edvirges Caminhão. Ela acordou e abriu a janela. Foi a única pessoa que
ouviu o que estava ocorrendo na casa do meu pai e ficou de lá, ouvindo. Só que
ela baralhou tudo o que ouvia e no depoimento foi dizer que tinha ouvido eu
dizer, de dentro de casa, que ia atirar nos agressores. Nada, eu não dizia que
ia atirar coisa nenhuma, mesmo porque eu não tinha revólver. O revólver estava
dentro do cofre e o meu pai não conseguia abri-lo.
Isto aconteceu
em 1937 e foi uma sensação na cidade a reação imediata do governador, das altas
autoridades do Estado, em apoio moral e material ao tio Ananias, injustamente
injuriado e atacado na calada da noite, em sua residência; ao meu pai, que além
de ser uma pessoa de bem, na ocasião era vereador e secretário da Câmara
Municipal e nós ficamos deveras confortados com esse episódio.
Uma
consequência desse episódio já ia, no âmbito familiar. A minha tia Naninha,
mulher do tio Ananias, ficou tão preocupada com este acontecimento, mesmo
porque no dia seguinte, algumas pessoas eram de opinião que devia ter havido
uma resposta violenta do meu tio. O Cel. Hermenegildo Furtado que morava
vizinho a ele e não tinha ouvido nada, não tinha percebido nada, foi logo de
opinião que o tio Ananias devia ter respondido com bala e a minha tia Naninha
ficou nervosa e pediu ao tio Ananias que saísse daquela casa e viesse morar
mais no centro da cidade. A casa não era longe do centro, mas era um pouco
afastada. Isto fez com que o tio Ananias comprasse, adaptasse e reformasse a
casa da rua 7 de Setembro 1097, onde ele morou o resto da vida e que hoje é o
museu que tem o seu nome. “Museu Comendador Ananias Arruda”.
Apenas para
encerrar este depoimento eu tenho que dizer que o coletor estadual, que tomou
parte deste lamentável episódio, chamava-se Casemiro Pinto Nogueira e seu filho
chamava-se Júlio Pinto Nogueira. Os dois
foram levados para Fortaleza, presos pelo Capitão Cordeiro Neto, depois que
este concluiu o inquérito policial que veio instaurar em Baturité e eu não sei
que fim eles levaram. Acredito que o coletor, que nunca mais apareceu em
Baturité, tenha sido demitido pelo governador e pelo Secretário da Fazenda que
era o Sr. Plácido Castelo, ou removido para um município muito distante. Do filho dele, também não tenho notícias. Depois
de passados tantos anos, eu não sei o que dele foi feito.
Aqui encerro este meu primeiro depoimento. São 11h da noite do dia 8 de outubro de 1991.
São 8:30h da
noite do dia 14 de outubro de 1991. Eu aproveito o resto da fita cassete para
fazer uma complementação dos episódios que já foram relatados.
Gostaria de
repetir que o episodio da cantoria que ocorreu na porta da casa do Sargento
Sebastião (delegado de polícia), na porta da casa do tio Ananias e na porta da
casa do meu pai, ocorreu na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas, do dia 10 de
fevereiro de 1937.
Um detalhe que não me ocorreu na ocasião do relato deste episódio e que me foi lembrado pela minha irmã Livramento é que minha mãe, quando ao meu lado abriu a janela e enfrentou os elementos que estavam cantando injurias e calunias na porta da casa de meu pai, empunhava um sapato. Era a única arma que tínhamos na ocasião para enfrentar estes agressores verbais da nossa família".
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